terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Kung Hei Fat Choi e Lai-si Tau Loi


Aconteceu a primeira vez. Entrar no ano duas vezes. Uma em 2010. Outra no ano do Tigre. Em 2010 foi igual a tantas outras. Tirando a geografia e a companhia nos festejos. Jantar bem regado. Meia-noite. Champanhe. Fogo-de-artifício. Madrugada dançante. Gin-tónico a descer. Ressaca a condizer. Depois veio o Tigre. Mês e meio mais tarde. A verdadeira passagem de ano chinesa.

Começou dias antes. 7h00. Dormia como um menino em Macau. Quando acordo no meio de Kabul ou da Faixa de Gaza. Rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá... pummmmm! Tenho sono leve. Mas esta merda acordava qualquer surdo. Foi dentro do prédio. Horas mais tarde comentei com alguém no trabalho e percebi tudo. O ano está a chegar ao fim e vai daí a vizinhança rebenta panchões de pólvora à porta de casa para espantar os espíritos. Assim eles não entram por ali dentro no ano novo. Parece-me justo. Entre descanso nocturno e espíritos à solta é de evitar a última hipótese. Apenas um pequeno problema. Os espíritos dos chineses nunca mais acabam.

Fui ver o fenómeno de perto. O Governo aqui da terra tem por hábito montar um recinto onde as pessoas se deslocam em romaria. Seja noite, seja dia. Faça chuva, ou faça sol. À falta de nome próprio chamemos-lhe 'panchódromo'. E o que é o 'panchódromo'? Um parque de diversões para crianças e adultos onde se vende pólvora. Muita pólvora! Desde aqueles inofensivos estalinhos de carnaval a rocket's de alcance considerável. Entre os tradicionais panchões, uns cartuchos de pólvora revestidos a papel vermelho. Rapidinhos ou intermináveis. A oferta é generosa. Compra quem quer. Pais incentivam filhos. Filhos choram por mais. Os pais compram mais. Ninguém regateia na hora de espantar espíritos. E há quem fume cigarros em ambiente explosivo apesar de ser proibido.

Vai-se ao 'panchódromo' como quem vai a Fátima pagar promessas. Nos altifalantes ouvem-se instruções de segurança em chinês, português e inglês. Só vi olhos-em-bico. É difícil descrever o som com palavras mas se fechar os olhos não é difícil imaginar um cenário de guerra. Guerra aos espíritos. Alguns dos engenhos assobiam. Outros começam tímidos e acabam potentes. Os tímpanos reclamam a cada berro de rebentamentos. Em termos de décibeis ganham os panchões. Ecoam por todo o lado. Iguais àquele que atravessou os meus sonhos. Rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá... pummmmm!

Fiquei a ver o espectáculo durante um bom bocado. Fui apenas espectador. Intrigado. Entusiasmado. Às vezes aparvalhado. Quando pedaços de cana caiam a menos de um metro do local onde estava. Acendi pivetes de incenso e não rebentei nada. Não acredito em espíritos. O 'panchódromo' fez-se ver e ouvir durante dias. E durante dias a cidade foi absorvida por turistas. Hotéis esgotados. Casinos lotados. Ruas apinhadas. Restaurantes reservados há semanas. Gente. Gente. Gente que nunca mais acaba. Disseram-me que há dez anos fechava quase tudo durante os feriados do Ano Novo Chinês. Hoje o capitalismo fala mais alto. Há gente, há dinheiro, há negócio. E o chinês é danado para o negócio.

Lembram-se dos coelhos do Festival da Lua? Substituidos por tigres. Os chineses relacionam cada novo ano a um dos doze animais que teriam atendido à chamada de Buda para um encontro. Doze compareceram. Buda, feliz e contente da vida e comovido com a presença do rato, do búfalo, do tigre, do coelho, do dragão, da cobra, do cavalo, da cabra, do macaco, do cão e do javali... transformou-os nos signos da astrologia chinesa. Ficou para trás o búfalo e entramos então no ano do tigre. Em Macau há bonecada espalhada pela cidade. Rotundas. Avenidas. Praças. O felino anda à solta. E cuidado com as garras da fera. Respeitinho. O horóscopo chinês lança sérios avisos à navegação, num ano de tempestades. É, por exemplo, um ano impróprio para casamentos. Uma amiga chinesa adiou a cerimónia para 2011 por causa disso mesmo. Sobrou para o coelho. Poucos arriscam casar no Ano do Tigre. Adivinham-se matrimónios atribulados. Uns anteciparam. Outros adiaram. Padres suaram e fizeram cálculos às datas.

Curiosa é também a meteorologia por esta altura. Frio que dói. Húmido e gelado. Custa estar em casa. A qualidade de construção em Macau é privilégio dos edifícios mais recentes. A roupa não seca. As paredes brancas ganham cor. O guarda-roupa adquire vida própria. Um bolorzito aqui e ali. Um dia antes do ano novo andava de t-shirt. Passaram os três feriados e a Sibéria já mora um bocadinho mais longe. É sempre assim nesta altura do ano. Sempre. Não falha, garantem. Por isso e pela invasão massiva de visitantes muitos portugueses e alguns locais desaparecem de Macau e refugiam-se na Tailândia. Filipinas. Vietname. Malásia. Num-sítio-qualquer-onde-não-faça-frio-e-haja-praia-por-perto. Naquele conforto dos mergulhos em águas quentes. Embora viajar nesta altura seja um assalto à carteira. Esgota tudo em pouco tempo.

Eu fiquei. Queria ficar, ver e absorver a festa chinesa. Ver gente a queimar pivetes de incenso e notas falsas. Na rua e nos templos. A fortuna para os antepassados foi tanta que houve notícia de um incêndio num santuário. Nada de grave a registar. Vai-se pedindo sorte, felicidade, longevidade, riqueza... por aí fora. Sempre em tons de vermelho e dourado. Volta e meia entregam-se pequenos envelopes com uma nota lá dentro. O famoso lai-si. Deseja-se 'Kung Hei Fat Choi' – 'Feliz Ano Novo Lunar'. Responde-se com 'lai-si tau loi!' – 'passa para cá o lai-si!' Casados oferecem aos solteiros. Sinónimo de fortuna para ambos os lados. Cheira-me que a balança desiquilibra para o lado dos solteiros. Recebi uns quantos. Pelo meio dei por mim em almoços tradicionais de ano novo, com sorteios. O lucky draw. Num deles calhou-me um par de garrafas de tinto. Houve quem não levasse nada para casa. Houve quem levasse sofás de massagens. Viagens. E placas de fogão. Placas de fogão!? Sim. Placas de fogão.

O vinho serviu para celebrar a chegada daquele objecto de culto tão desejado. Desejado há meses. Finalmente chegou. Sim!!! Chegou. Adivinhem lá? Isso mesmo. O meu novinho iPhone. Prontinho a capturar mini-saias por essas ruas fora. Estou agora mais perto do sapiens-tecnológicus que não vive sem smartphone. Mais perto dos deuses... afinal acendi uns incensos. E depois desta crónica, mais perto de vocês. Dos amigos e da família. Fazem-me falta, calalho! Se esclevel em chinês não é palavlão, pois não?

Kung Hei Fat Choi

* Crónica publicada no portal Observatório do Algarve a 22 de Fevereiro de 2010.

8 comentários:

  1. Merdinha pá vida própria da roupa acredita. O meu armário é quase indistintamente negro. brutal, não haja dúvida.

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  2. Também há fungos em franco desenvolvimento na escadaria do prédio! :)

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  3. é para ganhar anticorpos....
    grande abraço.

    já agora o link p o obsevatorio do algarve n funciona... vê se pões isso como deve de ser.

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  4. entre o fungos bolorentos e água interminável a cair do céu, fica-te pelos fungos das paredes!
    bela crónica a oriente meu amigo.
    abraço e manda lá essas prodigiosas fotos do iphone

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Acho que fez bela prosa intimista sobre a sua estada macaense, outrora a pérola portuguesa do rio das pérolas que tanto inspirou o excelente Camilo Pessanha.

    Que magnífico privilégio esse poder vivenciar um fase culturalmente excepcional do seu ciclo de vida numa península que tanto deu ao ocidental Portugal sem quase nada deste receber. E que sorte poder, a partir daí, explorar o dragão vizinho, cada vez menos adormecido.

    Força, porque as saudades matam-se com a memória e a visão do futuro; claro, também terá coisas mais pragmáticas como a net, a música, um bom vinho ou os petiscos lusos que animam e reconfortam.

    Ah! Apenas uma recomendação: se um dia optar por suspender o hobby da compilação fotográfica das minissaias e lhe apetecer comprar um cãozinho felpudo para seu divertimento ou companhia, escolha-o na montra, sim, mas não peça ao lojista para “guardar-se-faz-favor-que-já-o-venho-buscar-após-as-compras” porque se arrisca depois a receber um saquinho de plástico com o bichinho já preparado para ser confeccionado no tacho (episódio materno verídico :-)

    Cumprimentos do Algarve.
    JAM

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  7. Caro JAM, deu-me uma boa ideia para uma próxima crónica. Os petiscos que aparecem nas vitrines dos restaurantes ou em caixas junto à entrada. Vou considerar a recomendação.

    Cumprimentos
    Pedro Maia

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